1. Artigos x Dissertações

O artigo é o gênero básico da produção acadêmica contemporânea. Esse é um modelo que tem uma série de restrições formais (número de páginas pequeno, número de citações por vezes limitado, número máximo de autores em algumas revistas), mas que comporta trabalhos de todo tipo de complexidade. Sua função básica é servir como um relatório de uma pesquisa: expor os resultados de uma observação empírica e interpretá-los à luz da metodologia escolhida.

As dissertações são trabalhos tipicamente maiores, que seguem a estrutura mais ampla do livro e não o formato resumido dos artigos. Seguindo essa estrutura, as monografias são divididas em capítulos, e é legítimo que você tenha um capítulo de revisão de literatura e outro de contextualização histórica. Você pode escrever um capítulo explorando as intuições que foram geradas pelos resultados de sua pesquisa, mas que você não comprovou pela sua metodologia. Nos textos monográficos, todos esses capítulos entram no rótulo genérico de desenvolvimento, o que gera textos menos densos que os artigos, entendida densidade como uma relação entre extensão e conteúdo original.

Artigos são tipicamente trabalhos mais densos, pois eles são focados apenas nas partes que geram interesse de publicação: as revistas só têm interesse real em publicar contribuições originais, que serão citadas pelos pesquisadores do campo. Enquanto produto destinado à publicação, o artigo não se apresenta como um relato do itinerário formativo do estudante. Diferentemente dos TCCs, o artigo não tem por função servir como uma narrativa que indica os elementos de reflexão e aprendizagem que realizados ao longo do curso.

Ao longo do itinerário da pesquisa, o estudante realiza uma multiplicidade de estudos: faz uma série de anotações, desenvolve uma revisão exaustiva da literatura, explora uma série de intuições, discute a fundo suas opções metodológicas. Esses estudos servem como elementos de apoio, na medida em que permitem o aperfeiçoamento do problema e a definição da metodologia e do marco teórico. Trata-se de elementos que são necessários para a pesquisa, como são necessários andaimes para a construção de um prédio:

  1. É preciso analisar a literatura e definir as categorias e o modelo de dados;
  2. É preciso avaliar as metodologias aplicadas para escolher uma abordagem;
  3. É preciso explicar por que certa abordagem é promissora;
  4. É preciso estudar os conceitos em busca de taxonomias adequadas.

Todos esses estudos são importantes par que o pesquisador possa amadurecer sua abordagem e chegar às suas conclusões. No caso dos artigos, essas construções não têm espaço para um desenvolvimento maior. Elas podem ser mencionadas, mas não devem ser desenvolvidas, sob pena de retirar o foco do artigo, que precisa se concentrar em apresentar três pontos:

  1. a metodologia utilizada,
  2. os resultados da observação empírica ou da coleta de dados,
  3. uma análise do impacto dos resultados (conclusão e/ou discussão).

Mesmo quando não adotam o formato IMRD de escrita, os artigos precisam se concentrar nesses pontos. Eles podem apresentar a metodologia na introdução (quando ela é genérica), eles podem apresentar os resultados em várias seções, eles podem ser tão descritivos que o pesquisador prefere falar apensa em "considerações finais".

Os artigos são escritos ao longo do processo de pesquisa, mas é quando o itinerário chega ao final que o pesquisador precisa rever seu caminho e tomar uma decisão difícil: escrever um relatório minimalista, em que deve restar apenas os elementos mínimos que sustentam as conclusões.

Nada de revisões amplas de literatura, nada de páginas dedicadas a explicar a originalidade de certas contribuições teóricas pouco conhecidas, nada de explicações acerca dos pontos que forma abandonados no caminho, nada de páginas explicando a história do instituto quando o foco do artigo é falar de sua aplicação.

No artigo, é preciso fazer o trabalho de retirar os andaimes. Só a construção deve ser mostrada. O argumento precisa ser coeso e direto, e esse esforço de corte de todas as partes que não são fundamentais para o argumento costuma ser dolorido. Para todos nós, é difícil retirar textos cuja escrita exigiu noites insones, é difícil abandonar uma descrição sociológica que não entrou na argumentação mas que ajuda a compreender melhor o contexto no qual o problema analisado está inserido. Muitas coisas que são interessantes (ao menos para o pesquisador...) precisam ser cortadas dos artigos, embora elas tenham lugar nos trabalhos monográficos, que seguem a lógica do livro.

Os trabalhos monográficos são textos que costumam ter muitos andaimes. Isso é adaptado aos TCCs porque eles são como os problemas de matemática, em que os professores pedem que você apresente todo o seu raciocínio, pois o que está sendo avaliado não é a sua resposta, mas é o desenvolvimento do seu raciocínio. O TCC tem essa dúplice função de ser:

  1. comprovação de um processo de estudos que tem um caráter pedagógico e formativo;
  2. apresentação de um produto, que são as conclusões de uma pesquisa, que é a contribuição efetiva do pesquisador para o campo (e não para o desenvolvimento de suas habilidades).

Os cursos de pós-graduação têm uma identidade cindida porque esses dois objetivos não se ajustam muito bem. Alguns estudantes têm um desenvolvimento pessoal grande, mas apresentam um produto deficiente (normalmente pela falta de planejamento adequado ou por uma execução imperfeita). Outros estudantes entram em um grupo de pesquisa e aplicam uma metodologia que já conheciam, mas que gera produtos adequados.

E os produtos de um curso de pós-graduação são textos publicáveis, na medida em que eles têm uma contribuição a dar ao campo. Nos doutorados, espera-se inclusive que parte dos textos já tenha sido publicado, sendo comum a exigência de publicação de um artigo ao longo do curso para obter o título de doutor. Nos mestrados, essa exigência não é feita porque, dado o tempo restrito, a maioria dos estudantes não consegue chegar a resultados publicáveis antes do fim do curso.

Quando focamos nos artigos, adotamos a perspectiva de quem valoriza o produto e a pesquisa. Esse é um foco que está ligado aos critérios de avaliação dos PPGs, cuja nota na CAPES (que não define só seu prestígio e a continuidade do funcionamento, mas também o financiamento disponível e sua autonomia orçamentária) depende fundamentalmente da produção de artigos científicos revisados por pares. A CAPES exige dos cursos produção acadêmica revisada por pares, e essa é uma exigência que se transforma, na prática, em uma pressão para a publicação de artigos em revistas de grande prestígio e impacto.

Esse foco no produto se choca com a perspectiva tradicional dos cursos de Pós-Graduação em Direito, que sempre foram um lugar de reprodução do discurso dogmático, mais do que da produção de pesquisas. Os juristas escrevem normalmente ensaios hermenêuticos, defesas de teses, e não pesquisas empíricas com resultados a serem avaliados e divulgados. O elemento central trabalhos dogmáticos, que discute aplicações corretas do sistema jurídico, não é um conjunto de resultados, mas um conjunto de argumentos.

Esse é um tipo de preocupação que se realiza melhor no formato do livro do que no formato do artigo. No livro, cada capítulo deve contribuir para o argumento, mas esses capítulos normalmente são baseados em estudos (compilações, resenhas, redescrições, narrativas) e não em pesquisa primária.

2. A dissertação padrão: estudos preparatórios + artigo

As melhores dissertações não deixam evidentes os seus andaimes. Mas essas dissertações são raras e ultrapassam as qualidades exigidas para a aprovação de um curso de mestrado.

O que se espera minimamente de uma dissertação de mestrado é que ela tenha uma parte de pesquisa e uma parte preparatória de estudos. A parcela original da monografia tende a vir no penúltimo capítulo, que apresenta os resultados e discute o seu significado. O que vem antes disso não costuma ser uma pesquisa propriamente dita: não se trata de uma investigação orientada por um problema e que segue uma estratégia de abordagem definida.

Esses estudos preparatórios são longos e geram os primeiros capítulos da dissertação. Escolhas típicas são: abordagens históricas, revisões amplas de literatura em busca de esclarecimentos conceituais, traçados dos debates mais relevantes da área, contextualização sociológica de uma questão que será tratada.

Para realizar uma dissertação desse tipo, você não precisa fazer um projeto mais complexo do que o seu projeto de artigo. Você só precisa indicar com clareza que faz parte da sua estratégia de abordagem a realização de determinados estudos preparatórios (como os listados no parágrafo acima) e inserir esses estudos no seu rol de objetivos a serem realizados por meio de "pesquisa bibliográfica" (que não é pesquisa, mas estudo):

  1. Identificar as principais teorias sobre discricionariedade administrativa;
  2. Identificar as metodologias utilizadas nos estudo dos fundamentos de decisões em matéria tributária;
  3. Traçar a história de um instituto, por meio de fontes bibliográficas secundárias;
  4. Descrever uma certa metodologia de forma minuciosa e avaliar os ajustes que ela precisa sofrer para ser adaptada ao seu objeto;
  5. etc., etc. etc.

Cada um desses objetivos pode gerar um capítulo, e você pode pensar cada capítulo como um bloco de 10 a 20 páginas. Com isso, você pode deixar o seu capítulo final como sendo o artigo a ser mandado para publicação (com cerca de 20 páginas e contendo uma descrição da metodologia, dos resultados e a discussão) e contar antes disso com dois outros capítulos, em que você exponha estudos preparatórios.

Creio que essa é a complexidade mínima de uma dissertação de mestrado: traçar alguns estudos prévios necessários e incluir o resultado desses estudos como os capítulos iniciais. A definição desses estudos mostra a consciência que o estudante tem dos desafios que ele pretende vencer para chegar ao produto final.

Esse tipo de estudo terá relevância especial nas pesquisas exploratórias, cabendo inclusive reconhecer que a ausência na literatura de um mapeamento claro do problema exige que você faça a pesquisa com o objetivo de explorar as possibilidades de realizar tal mapeamento. Nesse caso, é de se esperar que a definição do artigo analítico terá de ser feita em moldes mais gerais do que o que apontamos até aqui como adequado. A metodologia não será tão precisa e é possível que o marco teórico  se limite à descrição geral da abordagem (sem uma definição exaustiva das taxonomias que serão utilizadas). Mas isso não é um problema, visto que a construção da análise dependerá, de fato, dos resultados da descrição, e essa descrição pode necessitar verdadeiramente de estudos prévios que viabilizem a formulação de categorias adequadas.

Uma dissertação com essas características pode ter uma qualidade excepcional, desde que o artigo produzido seja de excelência. Nesse caso, os estudos preparatórios não terão a forma de um artigo publicável, mas isso não é um problema, visto que a atenção maior está no artigo a ser publicado.

Exercício 1
1. Faça uma descrição minuciosa da sua estratégia de abordagem, tentando identificar os estudos preparatórios que seriam relevantes para você poder realizar uma formulação definitiva do problema, da metodologia e do referencial teórico.
2. Essa descrição deve ser uma checlist sequencial, indicando o passo a passo dos estudos prévios a serem realizados e, depois, da execução da pesquisa propriamente dita (coleta de dados e análise dos dados).
3. Esse checklist deve começar com "verbos", de tal forma que ele servirá como sua lista de objetivos.
4. Se você tiver mais de 5 objetivos, tente reuni-los em grupos: esses grupos de objetivos concatenados te darão a sua estrutura de capítulos, sendo que o último capítulo conterá propriamente o artigo que você planejou.

3. A dissertação de complexidade média

3.1 Capítulo Descritivo + Capítulo Analítico

Nos mestrados, a construção das dissertações normalmente tem apenas um elemento de pesquisa, o que gera resultados que normalmente podem ser condensados em um artigo de grande interesse para o campo, mas não gera dois trabalhos de investigação científica. Porém, quando um trabalho se aproxima da dimensão de um artigo grande (por volta de 30 páginas), a saída mais adequada, nos dias de hoje, é tentar dividir esse trabalho em dois artigos independentes. Esse é o melhor custo benefício em termos de trabalho x prestígio.

Mesmo que você parta da estrutura da dissertação padrão, é possível que você chegue a uma situação na qual o capítulo que corresponderia ao seu artigo se torne tão extenso que você se veja na necessidade de cortá-lo em dois. Nesse caso, é bem comum que você tenha um capítulo descritivo centrado na apresentação dos dados, e um capítulo analítico, centrado na interpretação dos dados.

O resultado prático é que você pode acabar produzindo um texto dissertativo mais amplo, que o conduzirá a ter alguns artigos sequencialmente ligados. Por exemplo você pode fazer um artigo que mapeia uma prática interpretativa do STJ e depois fazer uma análise filosófica (focada nas categorias usadas) ou uma análise sociológica (focada nas interações sociais que a condicionam) ou uma análise econômica (para avaliar o impacto econômico de uma interpretação).

Dependendo da complexidade da sua revisão bibliográfica, você pode chegar a artigo descritivo (apresentando os dados) e um artigo analítico (que seria o mais importante, na medida em que atribuiria uma significação aos dados). Eventualmente, o seu estudo metodológico pode gerar resultados tão interessantes que você pode até apresentar um artigo metodológico (discutindo a aplicabilidade de uma metodologia a certa situação) a certas revistas que estão interessadas nessas questões (como a da Rede de Estudos Empíricos).

3.2 Artigo analítico e Capítulo Prospectivo

Outra organização possível da dissertação é começar diretamente pelo artigo planejado, especialmente quando a sua pergunta é mais descritiva, e depois escrever um capítulos mais prospectivo, refletindo sobre os impactos das conclusões do artigo.

No caso de um mestrado profissional, essa estratégia pode levar à combinação de

  1. um artigo que alie a apresentação dos resultados com a sua interpretação (resultados + discussão);
  2. uma proposta de intervenção, que avalie em que medida as conclusões do artigo sugerem a necessidade de redimensionar alguma atividade judicante ou administrativa do órgão judicial avaliado.

Cursos com um viés mais prático deixarão espaço para esse tipo de abordagem, que tende a produzir propostas de inovação baseada em evidências. Esse baseado em evidências é importante porque uma proposta de intervenção que não estivesse calcada nos resultados de uma pesquisa não seria uma abordagem com uma complexidade compatível com um mestrado acadêmico ou profissional.

Exercício 2
1. Pense nos possíveis resultados da sua pesquisa e nos impactos que ela pode ter sobre a prática jurídica (especialmente sobre a prática administrativa ou judicial).
2. A partir dessa reflexão, imagine um projeto de intervenção prática que possa ser feita como uma proposta baseada nas evidências que podem decorrer do seu trabalho.
3. Mesmo que você não opte pela estrutura de artigo + proposta de intervenção, essa reflexão pode gerar ideias interessantes pora incorporar na justificativa do projeto.

4. Dissertações de alta complexidade: combinando dois artigos

Quando você tem dois artigos passíveis de publicação autônoma, mas interconectados, você certamente tem um trabalho de alta qualidade e complexidade. Porém, a opção por dois ou três artigos é um caminho mais oneroso do que o esperado para um mestrado.

As dissertações não exigem a complexidade de se fazer dois artigos autônomos e explorar as suas conexões, sendo que essa estrutura é mais típica de um doutorado. Nos doutorados, a originalidade normalmente está na exploração de dois elementos diferentes, cujo entrelaçamento não havia sido plenamente explorado.

Apesar disso, é possível que mestrandos tenham interesse em avançar desde logo para esse grau de complexidade, que maximiza os resultados do trabalho e o seu potencial de gerar publicações de grande impacto, publicável  em revistas de ponta. Se você decidir seguir por esse caminho, e realizar um projeto de dissertação com a complexidade próxima uma tese, sugiro adotar o seguinte procedimento:

  1. Escrever o projeto do primeiro artigo;
  2. Escrever o projeto do segundo artigo;
  3. Escrever um projeto comum, que será o projeto de dissertação. Esse projeto deve pensar desde logo na conexão entre os dois artigos e seu problema deve ser uma pergunta que pode ser respondida a partir da conexão entre os resultados de suas duas pesquisas.

Que conexões são possíveis? As mais variadas.

Você pode fazer, por exemplo, um artigo histórico tratando da processo de desenvolvimento de um instituto e outro artigo descritivo tratando do modo como ele é usado na prática judicial contemporânea. A conexão entre essas duas abordagens permite que o seu problema esteja ligado a avaliar se há uma conexão efetiva entre essa prática e o desenvolvimento história do instituto. A depender dos resultados, você pode ter uma conclusão tão interessante e complexa que, ela própria, também venha a ser um artigo independente.

Essa construção modular é interessante, mas é oneroso partir desde logo para essa definição de dois projetos independentes. Por mais que a exploração autônoma permita o desenvolvimento de um grau específica de complexidade (a exploração das relações entre duas pesquisas autônomas), nossa sugestão que é você opte por uma dissertação de complexidade padrão, em que não há dois artigos coordenados (e um texto de ligação), mas um artigo de pesquisa combinado com estudos preparatórios mais desenvolvidos (mas que não seguem uma metodologia predefinida).

Note que essa escolha por uma estrutura menos complexa não significa uma redução na qualidade do trabalho, visto que essa qualidade será definida basicamente pela excelência acadêmica do artigo principal. Aumentar a complexidade do trabalho significa aumentar os desafios a serem enfrentados, e não a qualidade do resultado final. De fato, a depender do nível de complexidade escolhido, pode ser difícil manter a qualidade dos trabalhos no restrito período de um mestrado.

Exercício 3
1. Reflita sobre a possibilidade de escrever dois artigos diferentes no seu TCC. Nesse caso, que artigos você gostaria de escrver? 2. Mesmo que você não opte por essa estrutura mais complexa, identificar esses dois artigos pode evidenciar a necessidade de certos estudos preparatórios que não estejam no seu radar neste momento.