1. Por que projetos?

É possível fazer uma pesquisa sem um projeto bem definido? Claro. Pode dar certo? Pode, especialmente para um pesquisador experiente, que conhece vários modelos de pesquisa. Mesmo sem um projeto, o pesquisador pode definir um objeto e aplicar a ele uma série de modelos de análise, que podem levar a resultados adequados. Porém, as pesquisas normalmente envolvem esforços muito grandes e, sem os devidos cuidados, é possível que os resultados sejam inexpressivos ou, pior, que cheguemos a conclusões falaciosas.

Um dos grandes riscos é que a pesquisa se transforme em um simples instrumento de confirmação, o que esvazia o seu significado e a sua utilidade. Uma vez que o pesquisador desenvolve intuitivamente uma hipótese, ele pode ficar tão preso a ela que passa a interpretar seletivamente os dados disponíveis para que o trabalho seja um argumento voltado a defender sua hipótese. Nesse caso, a pesquisa se aproxima perigosamente do parecer, no qual uma certa interpretação é retoricamente defendida, e um dos grandes riscos de oferecer opiniões é que tendemos a ser pouco exigentes para os argumentos que confirmam as nossas intuições, mas tendemos a ser muito exigentes com os argumentos que as contrariam.

O risco de que a pesquisa se converta em uma pregação para os convertidos é muito alta, e esse tipo de discurso tem uma relevância acadêmica muito baixa. Ele até pode servir para que uma pessoa ganhe prestígio em seu próprio grupo, mas ele tende a ser reconhecido como uma argumentação frágil pelas pessoas em geral.

Existe também um risco muito grande de que trabalhos sem planejamento ultrapassem os prazos, pois a busca intuitiva de soluções costuma exigir um esforço constante de reescrita. Este texto, por exemplo, não segue um plano rígido. Ele segue um planejamento geral, dado pela ementa do curso, mas não houve um planejamento claro de todas as etapas de escrita, antes da redação. Essa é uma escolha que faz com que vários trechos sejam escritos e revisados, com que muito trabalho tenha de ser feito várias vezes, o que alonga o processo de escrita, mas não compromete o resultado porque eu tenho tempo para lidar com essas contingências.

Isso ocorre principalmente porque esse é um trabalho técnico, com uma petição inicial. Ele não busca descobrir nada de novo, mas apenas ordenar conhecimentos estratificados em uma ordem adequada e com estratégias retóricas capazes de alcançar os objetivos didáticos a que o texto se propõe. No caso de uma pesquisa científica, a situação muda de figura, pois esse tipo de atividade normalmente exige a formulação de experimentos (nas ciências experimentais) ou extensos levantamentos de dados (nas abordagens empíricas), que precisam ser devidamente classificados e analisados (tanto nas abordagens empíricas como nas teóricas) para que seja possível chegar a resultados sólidos.

Nesse tipo de situação, boa parte dos pesquisadores não pode lidar com o risco de ter de fazer novamente um levantamento de dados, pelo fato de que essa complementação ultrapassaria tanto o orçamento disponível quanto o tempo disponível. Os tipos de dados levantados dependem das metodologias de análise disponíveis, e estas dependem do repertório de categorias utilizadas na classificação dos dados, mas estas classificações dependem fortemente dos próprios dados, em uma relação circular.

Essa circularidade da atividade de pesquisa faz com que, de antemão, todos os pesquisadores saibam que terão de redimensionar várias vezes as suas perguntas, as suas classificações, as suas conclusões. Não há um caminho linear para a pesquisa, que atua constantemente equilibrando uma série de relações complexas entre os vários elementos que compõem um modelo explicativo do real. O risco de partir para a pesquisa sem um projeto claro é que sabemos que o tempo de pesquisa será alargado e que, em boa parte das vezes, teremos de fazer reduções dramáticas nas pretensões da nossa pesquisa para acomodar nossas conclusões às análises que podem ser feitas com os nossos dados.

No limite, podemos ter de refazer a coleta dos dados porque não levamos em conta, por exemplo, que era preciso diferenciar as decisões de procedência em que era utilizada a técnica da interpretação conforme. Uma distinção que poderia não parecer relevante no início dos trabalhos pode se transformar em uma diferenciação vital para que seja possível identificar padrões decisórios estáveis.

Para garantir que os trabalhos acadêmicos não caiam nessas armadilhas, a academia oferece aos estudantes duas grandes estratégias de controle de riscos: o primeiro deles é o projeto. O projeto permite que realizemos um certo protótipo da pesquisa, realizando uma análise em abstrato da coesão entre os vários elementos.

É o desenvolvimento do projeto que nos permite, entre outros pontos:

  1. analisar a clareza das nossas perguntas (limitando ambiguidades, circunscrevendo dúvidas;
  2. avaliar em que medida existem dados disponíveis capazes de responder a nossas perguntas;
  3. dimensionar o levantamento de dados necessário para ter alguma resposta;
  4. avaliar se as categorias de um certo modelo são capazes de orientar as nossas pesquisas ou se é preciso redimensionar esses conceitos.

A resposta a qualquer desses pontos é complexa e tem impacto nos outros pontos. Por isso, é muito conveniente que esse jogo de equilíbrios e reequilíbrios seja feito inicialmente em abstrato, projetando as dificuldades da pesquisa e resolvendo as incongruências variadas que podemos identificar nessa fase.

Os projetos são uma oportunidade de reflexão que, no fim das contas, poupam tempo precioso, na exata medida em que eles permitem que façamos ajustes variados antes do trabalho.

Ao lado dos projetos, o segundo elemento de proteção dos estudantes contra as armadilhas típicas da pesquisa é o orientador. Um dos pontos mais relevantes da presença do orientador é justamente servir como um leitor cuidadoso do projeto, capaz de ver os pontos cegos do estudante, de verificar as incongruências entre as várias partes do planejamento e de apontar ajustes que podem superar as dificuldades.

A pesquisa acadêmica é sempre uma pesquisa revista por pares. Parte relevante do trabalho da academia é avaliar os trabalhos dos outros pesquisadores, para definir quais são as contribuições que devem ser incorporadas ao conhecimento comum, e quais são as contribuições que devem ser consideradas pouco sólidas. O orientador possibilita uma supervisão contínua as várias etapas do trabalho por um pesquisador experiente e comprometido com os resultados, dos quais ele é corresponsável.

Muitos dos equívocos que o orientador é capaz de observar, a partir de seu conhecimento e experiência, não são perceptíveis por estudantes que podem ser técnicos especializados, mas que tendem a ser iniciantes na atividade de pesquisa.

Com um orientador experiente e a produção conjunta de um projeto adequado, a atividade acadêmica se torna mais rápida e mais segura para os estudantes.

2. O projeto

Todo trabalho acadêmico tem início com a elaboração de um projeto. Esse projeto pode ser desenvolvido de forma mais elaborada ou mais simples, pode ser escrito ou permanecer apenas como uma série de ideais alinhavadas na cabeça do pesquisador. Mas não há como iniciar uma monografia sem a definição de alguns pontos relevantes, nem como desenvolvê-las sem que se faça uma série de opções metodológicas.

O problema de muitas monografias é que essas opções são feitas de forma inconsciente e irrefletida, o que pode levar deficiências variadas, como a indefinição do objeto, a contradição dos pressupostos, a vagueza das perguntas ou a inadequação entre objetivos e metodologia. Muitas vezes, tais problemas são percebidos apenas em um estágio muito avançado da dissertação, e resolvê-las envolve abandonar muito do trabalho feito, algo que ninguém faz sem uma sensação de ter perdido tempo precioso.

Por isso, ainda que todos saibamos que os projetos de pesquisa são alterados constantemente no elaborar da própria monografia, é importante que o pesquisador se posicione conscientemente acerca de alguns pontos fundamentais, e essa é a principal função da elaboração do projeto de monografia: tornar o pesquisador consciente das potencialidades e dificuldades do trabalho a ser feito e prevenir a ocorrência de uma série de problemas e de trabalho perdido.

3. Quatro elementos fundamentais do projeto

Os projetos envolvem vários elementos diversos, mas três deles aparecem como elementos centrais para serem pensados no primeiro momento:

  1. Pergunta a ser respondida (Problema de pesquisa)
  2. Procedimentos de pesquisa (Metodologia)
  3. Esclarecimentos conceituais (Referencial teórico)
  4. Justificativa (Explicação da relevância teórica e social)

Esses elementos precisam ser muito bem pensados, pois os demais elementos decorrem do equilíbrio dos três primeiros polos. O planejamento pode começar por qualquer um deles, pois o passo seguinte depende de um trabalho cuidadoso de dimensionamento desses pontos.

A justificativa não é parte do planejamento do projeto, mas ela é uma parte essencial do seu contexto, já que a falta de uma justificativa adequada inviabiliza o projeto. A coerência interna é fundamental para que o planejamento seja bem feito, mas a falta de justificativa adequada faz com que não valha a pena investir mais tempo no planejamento do projeto.

3.1 Definição do Problema de Pesquisa

3.1.1 O problema de pesquisa

O ponto inicial da pesquisa é identificar algum ponto dos nossos conhecimentos que consideramos deficiente. Tipicamente, identificamos algum ponto bastante específico acerca do qual temos algumas intuições, que não foi mapeado de forma rigorosa  (como sobre a influência da formação dos assessores nas decisões de um Tribunal) ou que já foi mapeado de uma maneira que consideramos insuficiente (como as influências políticas nas decisões de habeas corpus de um Tribunal).

As deficiências identificadas no conhecimento sobre determinado tema podem ser descritas na forma de uma pergunta:

  1. O que não sabemos, mas queremos saber? Esse é um problema que normalmente nos leva a pesquisas exploratórias de novos campos inexplorados.
  2. Que intuições queremos testar? Esse é um problema que nos leva a formular hipóteses, que normalmente ocorrem em campos já mapeados, mas que sempre têm muitos vazios a serem complementados.
  3. Que percepções equivocadas pretendemos corrigir? Essa é uma forma específica de intuição, que leva à hipótese de que as percepções usuais não estão corretas. Trata-se de um tipo de problema que normalmente gera pesquisas com grande relevância social.

O problema de pesquisa é justamente essa pergunta, que define aquilo que será investigado. Não se trata apenas de um tema, mas de uma definição clara e precisa daquilo que pretendemos descobrir.

Falando assim, até parece fácil. Mas o fato é que boa parte dos pesquisadores dedicará um tempo muito grande (e angustiado) a essa que é a definição mais importante do trabalho, visto que guiará todos os esforços posteriores.

Nos cursos de pós-graduação, é comum que ao menos metade do tempo do curso esteja ligado a essa definição do problema: as matérias obrigatórias expandem os horizontes do pesquisador e geram novos diálogos, com o objetivo de viabilizar a construção de problemas relevantes e atuais. As disciplinas de metodologia estão voltadas a capacitar os estudantes a fazerem essas escolhas de maneira refletida e crítica.

Chega um momento no qual é preciso definir o problema de forma tão clara que seja possível dedicar o restante do tempo de curso à execução da pesquisa, e não ao seu planejamento. É comum que muitos estudantes fiquem presos nessa dinâmica de projetar problemas e abandoná-los, por considerar que eram insuficientes ou por perderem a motivação de realizá-los.

Essa dificuldade faz com que, nos cursos de doutorado, haja uma etapa específica de qualificação: um momento no qual o estudante precisa apresentar o seu problema de pesquisa e as estratégias metodológicas, para que essas estratégias sejam validadas por pesquisadores experientes, mas também para que o pesquisador fique definitivamente comprometido com a realização do projeto. Um projeto que passou por uma banca de qualificação não pode ser estruturalmente modificado, pois isso exigiria uma nova banca de qualificação, que é algo extremamente raro.

Essa importância central do problema de pesquisa faz com que ele precise ser muito bem pensado, visto que é necessário equilibrar os interesses que motivam o pesquisador a realizar a pesquisa (e que normalmente apontam para problemas complexos) e os imperativos práticos ligados ao planejamento de uma investigação factível (que apontam para recortes mais limitados).

Esse é um equilíbrio difícil e que, portanto, precisa ser bem refletido. Assim, para definir a pergunta, é conveniente fazer certas reflexões, certas definições prévias e, muitas vezes, é também necessária a realização de longos estudos preparatórios.

3.1.2 Temas de interesse

Costuma-se dizer que o primeiro passo para realizar a monografia é escolher o tema. Mas acontece que, na prática, muitas vezes iniciamos nossos trajetos a partir de outros lugares. Podemos começar definindo os textos com que gostaríamos de dialogar ou  os autores com quem queremos trabalhar ou  o tipo de impacto que o trabalho deve ter no mundo ou em nossa carreira.

Essa diferença de fatores decorre do fato de que o trabalho acadêmico desempenha um papel diferente na vida de cada pessoa. Para uns, é principalmente um momento de realização pessoal. Para outros, é principalmente uma oportunidade de crescimento profissional. Para as pessoas que querem exercer o magistério, é uma etapa necessária de formação. O tempo que cada um tem disponível é diverso e o conhecimento prévio de cada um também. O resultado é que a escolha do tema de pesquisa precisa equilibrar uma série de variáveis que mudam muito de pessoa para pessoa.

Entre essas variáveis, creio que a mais importante é o interesse pessoal. O professor Roberto Aguiar dizia que nenhum trabalho era bom se o pesquisador não havia chorado e rido sobre o tema acerca do qual ele se debruça. Vocês terão que passar muitas horas (mas muitas mesmo)  estudando a matéria escolhida e fazendo análises exaustivas de dados.

Chega um ponto em que você provavelmente se cansará do seu tema, mesmo que você goste muito dele. Isso acontece com quase todo mundo, mas é pior quando você não tem uma especial atração pelo seu problema de pesquisa. É preciso um certo grau de paixão para que o trabalho seja bom, pois, se o autor não está engajado, ele poderá abandonar o trabalho no meio ou simplificar suas análises ao ponto de comprometer a relevância dos resultados.

Se o próprio pesquisador não estiver convencido da importância do seu trabalho, dificilmente ele vai conseguir convencer a banca de que se trata de uma pesquisa relevante. Os membros da banca precisarão ler o seu trabalho e gastarão algumas horas fazendo isso, e eles serão plenamente capazes de identificar se o nível do seu engajamento na pesquisa foi intenso, ou se ela não passou de uma simples formalidade. Essa percepção faz com que muitos examinadores questionem durante a banca acerca dos motivos que levaram o autor a escolher o tema.

Por que eles perguntam isso? Porque a defesa de uma monografia não é simplesmente a apresentação de um trabalho, mas a apresentação de uma perspectiva de mundo, feita por uma pessoa observa as coisas a partir de sua perspectiva, e a compreensão do local a partir de onde a pessoa fala é importante para compreender o próprio sentido do discurso.

Por isso, um bom exercício é elaborar, neste momento, um texto de 5 a 10 linhas explicando os motivos pelos quais o você optou por se inscrever neste curso (Exercício 1) . Entender bem as suas motivações pode facilitar a escolha do tema e a escrita da justificativa, pois normalmente os motivos que levam à opção pelo curso são relevantes na definição do tema da monografia.

O tema é normalmente definido por nossas preocupações pessoais, pelas questões que nos tocam, e é importante que seja assim pois é difícil que uma pessoa dedique dezenas de horas à pesquisa sobre temas que não lhe interessam muito. Esse relativo desinteresse pode decorrer do fato de que muitas vezes os temas nos são impostos externamente:

  1. pelos interesses do órgão em que trabalhamos e que somente oferece licenças para tratar de certas questões;
  2. por um orientador com o qual gostaríamos de trabalhar e que atua em uma área muito determinada;
  3. pela disponibilidade de bolsas acerca de uma temática que é trabalhada por um projeto de pesquisa estruturado
  4. por outras razões práticas que podem condicionar a viabilidade prática do trabalho.

Embora razões de ordem prática sejam de importância inegável, é preciso equilibrá-las com nossos interesses pessoais, pois não é incomum que concessões pragmáticas terminem por gerar grandes dificuldades na execução do trabalho. Mesmo quando temos bastante interesse em um tema, a exposição prolongada a ele pode gerar cansaço.

Começar um novo trabalho pode ser a única opção quando o desinteresse chega a tal ponto que o trabalho fica paralisado, ou que a sua qualidade seja muito comprometida. Por isso, quanto maior for o engajamento emocional com a temática escolhida, maiores serão as chances de o pesquisador dedicar seu esforço a um trabalho que que costuma engolir horários antes destinados ao lazer, à família , ao trabalho e os amigos.

3.1.2 Tema como Área de Estudos

O tema pode ser pensado em diferentes níveis de especificidade, inclusive porque o trabalho pode tratar de elemento bastante amplos (como dos julgamentos do STJ ou do Direito Tributário) ou elementos mais restritos (como certo grupo de julgamentos ou certos temas de direito previdenciário).

A definição final do tema somente será feita com uma definição final do problema: o tema será o campo de estudos em que o problema se insere.

Outro ponto é que muitos estudos exigem esforços interdisciplinares: estudar comportamento do STJ é, ao mesmo tempo, um estudo sobre instituições políticas e sobre processo decisório. Quando escolhemos um objeto de estudos concreto, nele se cruzam muitas temáticas possíveis, muitas abordagens. Uma boa pesquisa precisa utilizar instrumentos de várias áreas do conhecimento (sociologia, história, dogmática, etc.) para alcançar uma compreensão adequada do objeto.

De um modo ou de outro, um bom começo é entender qual é o campo em que se situam nossos interesses, visto que as metáforas que usamos para falar do tema são espaciais: campos ou áreas dentro dos quais gostaríamos de situar nossa pesquisa.

3.1.3 Elaborando perguntas

Fixado um campo de interesse, é preciso desenvolver perguntas que orientem a pesquisa. E um trabalho acadêmico é, em linhas gerais, a resposta a uma única pergunta (o que é verdade para uma monografia, mas é um imperativo maior ainda para um artigo, pelas suas dimensões).

O seu trabalho será resposta longa, complexa, elaborada, mas tipicamente será uma resposta. Eventualmente, você pode fazer duas (ou mais) perguntas articuladas, mas o comum é que a pesquisa seja mais eficiente pensando em uma pergunta de cada vez.

Assim, é preciso desenvolver a habilidade de fazer perguntas, relembrando a capacidade de estranhamento e de curiosidade de uma criança de sete anos. Nessa idade, todos perguntam muitas coisas, e muitas vezes as nossas experiências nos ensinam a deixar de fazer perguntas, a aceitar as coisas como dadas, a não se preocupar com as razões ou sentidos. Tudo isso é o contrário do espírito acadêmico, que se nutre de curiosidade e de espanto.

Aquilo que nos estranha se apresenta a nós como um problema, como uma pergunta que pede uma resposta. O desenvolvimento dessas respostas é parte do discurso acadêmico. Mas a formulação das perguntas é tão importante quanto a elaboração da resposta.

O projeto de pesquisa constrói-se sempre a partir de uma pergunta e, por isso, é preciso escolhê-la com cuidado. De fato, a maior dificuldade em qualquer projeto é escolher a pergunta, pois esse é um exercício de liberdade e a liberdade normalmente é acompanhada por certa angústia, pois a escolha de uma pergunta normalmente afasta outras das quais gostamos muito. Vários pesquisadores fazem uma série de perguntas das quais gostam e têm dificuldade a ficar com apenas uma dela. A multiplicação de perguntas é interessante como exercício, mas será fatalmente necessário abandonar várias das coisas que gostaríamos de saber, para focar naquelas que podemos descobrir no tempo disponível, com os recursos a que temos acesso.

(Exercício 2) Elabore uma lista de 5 perguntas sobre um determinado objeto. Se faltar inspiração, pense no que perguntaria sobre ele um economista, um sociólogo, um psicólogo, um jurista e um filósofo. Ou sobre o que perguntaria um juiz, um advogado, um promotor, um político e um administrador. Essa troca simulada de papéis pode estimular a criatividade para ver como as perguntas podem se multiplicar (e se relacionar).

3.1.4 As perguntas mostram os interesses do pesquisador

O interessante do exercício de elaborar perguntas é que ele nos permite lidar, reflexivamente, com os nossos próprios interesses. Uma pessoa com inclinações históricas tende a valorizar investigações que tratem da evolução de um instituto ao longo do tempo, ou das implicações atuais de certas escolhas feitas no passado. Essa perspectiva diacrônica dos historiadores gera uma linha de tensão interessante, entre passado e presente (e futuro).

Um sociólogo tende adotar uma perspectiva sincrônica, tratando do modo como determinados fenômenos podem ser lidos como resultados da interação de elementos diferentes de um sistema social. Em vez de pensar na evolução histórica, a sociologia se concentra na interação de subsistemas sociais.

Quando focamos no papel de certos agentes (grupos de pressão, classes, partidos), chegamos normalmente a descrições baseadas nos interesses dos agentes, que são típicas da ciência política. Quando deixamos de lado a questão da agência, e nos concentramos nos equilíbrios das interações sociais (modos de relação entre o judiciário e o legislativo, existência de normas), adotamos abordagens institucionalistas (menos focadas nas pessoas e seus interesses, mais focadas nos padrões efetivos de interação). Já o neo-institucionalismo busca produzir explicações que equilibrem o foco nos atores e o foco nas instituições.

As perspectivas filosóficas se concentram nas articulações conceituais. Os discursos efetivos dos ministros do STJ revelam que tipo de conceito de celeridade processual ou de acesso à justiça. O estímulo à autocomposição é uma questão de respeito à autonomia das partes ou é apenas uma defesa velada de redução das cargas de trabalho do judiciário? Que conceitos de legitimidade política estão inscritos nos discursos contemporâneos de valorização dos métodos autocompositivos?

E temos também as perspectivas dogmáticas, que perguntam sobre os modos corretos de interpretar, e que tipicamente não se articulam bem com as evidências (pois os seus critérios de validade passam longe da empiria).

Cada perspectiva engendra suas próprias perguntas, cada pergunta carrega suas peculiaridades e nem sempre somos muito conscientes dos mecanismos que nos fazem preferir algumas abordagens. Para refletir sobre isso (Exercício 3), analise as perguntas formuladas no Exercício 2 e identifique os tipos de abordagem que estão relacionados com cada uma delas.

3.1.5 Toda pergunta tem uma resposta?

Nem toda pergunta pode ser respondida, pois muitas vezes a própria pergunta é mal feita ou ela impõe desafios impossíveis.

  1. Qual o maior número inteiro?
  2. Com quantos paus se faz uma canoa?
  3. A constituição brasileira objetivamente permite o casamento de pessoas do mesmo sexo?

Algumas perguntas podem até ser respondidas, mas sem que isso envolva a articulação de evidências. Uma coisa é estudar mitologia hinduísta para descobrir quais são as características atribuídas a Ganesha ou a Shiva. Outra coisa é tentar descobrir quais são as verdadeiras características desses deuses. Uma coisa é estudar a jurisprudência do STJ para entender qual é o sentido atribuído a princípio da proporcionalide. Outra coisa é supor que existem sentidos objetivos para princípios constitucionais (ainda mais para os que são apenas implícitos).

As pesquisas propriamente ditas são investigações sobre evidências, com o objetivo de construir modelos descritivos ou explicativos. Porém, há perguntas que somente se tornam respondíveis quando pressupomos a adesão do investigador a certos parâmetros não empíricos, como as crenças religiosas ou dogmáticas. Os limites do que se pode descobrir a partir de uma investigação dos fenômenos são os limites das nossas atividades de pesquisa.

Podemos ir além desses limites, mas isso nos leva a terrenos diferentes da pesquisa e da ciência: no direito, essa tentativa normalmente está ligada ao desafio dogmático de identificar interpretações objetivamente válidas.

(Exercício 4) Elabore uma pergunta que não pode ser respondida por meio de uma pesquisa e explique os motivos pelos quais isso ocorre.

Algumas perguntas são passíveis de resposta, mas para que isso seja possível, elas precisam de  esclarecimentos adicionais. Se eu pergunto “chove?”, preciso esclarecer a pergunta, pois tenho que esclarecer onde, quando, e possivelmente o conceito de chuva (diferenciando, por exemplo, de garoa).

Esses esclarecimentos conceituais fazem parte da própria elaboração da pergunta, que precisa ser feita de forma a que o interlocutor possa entender o questionamento que é feito.

As perguntas condicionam as respostas. “Os refugiados X são políticos ou de guerra” . Pode-se partir de uma determinada concepção, que diferencie conceitos e a pergunta que parte desses conceitos somente pode ser respondida com base neles. Portanto, é preciso ter consciência da base conceitual que está por trás da pergunta, inclusive porque somente com base nela se pode compreender a resposta.

3.1.6 Estudos exploratórios

Muitas vezes buscamos desenvolver nossos problemas de pesquisa e, no meio do caminho, descobrimos que não sabemos bem como formular as perguntas. Não sabemos se as perguntas são adequadas, se elas são respondíveis, se elas são relevantes. Nesses casos, é bem comum que nossa primeira providência seja a realização de estudos exploratórios: buscas dentro do conhecimento disponível de elementos que nos possibilitem formular os nossos projetos de pesquisa. Não se trata de estudos voltados a realizar os projetos, mas a adquirir os conhecimentos necessários para a sua formulação.

3.2 Justificativa

A justificativa é um elemento que inserimos nos nossos planejamentos para apresentar argumentos que  justifiquem a relevância de dedicar tempo e recursos para o enfrentamento do problema de pesquisa definido no projeto. Em projetos com impactos muito evidentes, a justificativa pode ser resumida.

Porém, há contextos nos quais a justificativa se torna crucial, especialmente quando se trata de trabalhos puramente teóricos. Nesses casos, é possível que seja necessário esclarecer bem quais são os potenciais impactos da pesquisa, pois é possível que o pesquisador enxergue certas conexões e implicações que não são perceptíveis pelas pessoas que vão examinar o projeto, sejam os professores de metodologia, os orientadores ou mesmo seus próprios colegas.

Também é importante a justificativa quando não for evidente a ligação entre o projeto e a capacidade de orientação instalada no programa de pós-graduação. Além disso, quando há linhas de pesquisa definidas, um elemento relevante da justificativa é a demonstração de que o projeto se encaixa nas linhas e projetos de pesquisa existentes.

No caso de cursos de pós-graduação institucionais, a justificativa tende a ser especialmente relevante para marcar a ligação entre o projeto de pesquisa e os objetivos da organização que financia a realização do curso.

Percebe-se, pois, que a justificativa é um elemento extremamente plástico, cujo conteúdo depende do modo como se projeta que as pessoas perceberão a relevância (teórica e empírica) da pesquisa e sua inserção nos objetivos específicos de cada PPG. Quanto maior a possibilidade de que as pessoas não compreendam a importância e os impactos potenciais do projeto, maior a necessidade de oferecer argumentos suficientes para justificar que o projeto planeja uma pesquisa bem acoplada aos objetivos que ela deve cumprir (e que variam de programa a programa).

Uma vez formulada a primeira versão do problema, vale a pena pensar desde logo na justificativa, pois a ausência de argumentos sólidos para justificar a relevância do trabalho faz com que não valha a pena sequer pensar nos outros elementos do planejamento da pesquisa.

3.3 Procedimentos de pesquisa

A metodologia é uma questão central em todo projeto de pesquisa, pois ela esclarece as estratégias de abordagem que serão utilizadas com o objetivo de enfrentar o problema definido. Uma metodologia clara e precisa garante que as pessoas possam avaliar a solidez das conclusões.

Esses procedimentos precisam indicar o modo como os pesquisadores lidarão com as evidências empíricas: que tipo de dados pretendem produzir ou observar, como esses dados serão analisados, que tipo de conclusão se considera serão decorrentes dos diferentes resultados possíveis.

Trata-se de um tema complexo, que merecerá um texto especificamente dedicado a ele, motivo pelo qual este item dá apenas essas orientações muito genéricas.

4.4 Esclarecimentos conceituais (Referencial teórico)

O referencial teórico deve indicar o repertório de conceitos que você utilizou na formulação do problema e na definição da metodologia.  O marco teórico não é um autor, pois pessoas não são teorias e, além disso, vários filósofos passam por fases diversas.

Quando você se pergunta sobre a existência de um fenômeno (por exemplo, da monocratização das decisões), você normalmente usa categorias cujo sentido precisa ser explicitado (como monocratização e decisões). Quanto maiores as implicações avaliativas (e não meramente descritivas) dos seus conceitos (por exemplo, ao avaliar a eficácia de uma política ou a taxa de sucesso da defensoria pública), maiores serão as necessidades de explicar o sentido dos conceitos que você usou.

Uma opção é você desenvolver conceitos próprios, explicando o sentido no você usa todas as categorias referidas no seu trabalho e as suas perspectivas de abordagem. Porém, esse desenvolvimento teórico é uma construção difícil e trabalhosa, que envolve uma análise conceitual complexa e demorada.

Além disso, o desenvolvimento de novos conceitos exige estudos muito amplos, análise das categorias teóricas já desenvolvidas, das metodologias utilizadas em outros trabalhos, das implicações mais amplas das escolhas conceituais.

Quando uma pesquisa empírica demanda escolhas conceituais muito complexas, é muitas vezes necessário dar um passo atrás e realizar pesquisas teóricas amplas, grandes revisões de literatura, análises teóricas minuciosas em busca de garantir que a pesquisa estará baseada em um repertório sistemático de categorias consistentes.

Por isso mesmo, o mais normal é que você não desenvolva as categorias usadas no seu trabalho, mas que você se aproprie de categorias desenvolvidas por outros pesquisadores, que já as analisaram e testaram. Em vez de construir uma teoria (que é uma rede sistematizada de categorias), é mais normal (e eficiente) você estudar os trabalhos existentes e utilizar (com a devida citação) uma teoria.

Se você optar por uma combinação de teorias, há o risco de que você mescle conceitos cujo acoplamento é problemático, ou caindo em armadilhas (como usar duas teorias que têm um mesmo conceito, mas que têm sentidos diversos em cada teoria).

As teorias são perspectivas, e nem todas as perspectivas (para dizer o mínimo) são compatíveis entre si. Por exemplo, a mescla de teorias sociológicas (teorias explicativas baseadas em uma análise externa de sistemas sociais) com teorias dogmáticas (teorias comprometidas com os pressupostos internos de um sistema e com sua capacidade de gerar decisões) pode ser desastrosa.

Quanto mais descritivo o trabalho, menos complexa é a questão teórica envolvida. É claro que as descrições envolvem categorias, mas elas são menos controvertidas, e pode ser suficiente alguns esclarecimentos para evitar indefinições e mal-entendidos.

Quanto mais avaliativo o trabalho, mais a teoria precisa de critérios claros, para saber o que é uma interpretação correta, uma decisão válida, uma política eficaz. Quando não se busca apenas uma descrição, mas uma explicação causal, é preciso adotar teorias capazes de indicar as relações de causalidade e de proporcionar metodologias capazes de medi-las.

No campo do direito, como as perspectivas dogmáticas tendem a gerar perguntas sobre a interpretação correta do direito, o referencial teórico ganha muito relevo, sendo necessário esclarecer os critérios de correção que serão utilizados para avaliar as interpretações normativas.

O problema é que, muitas vezes, a pesquisa jurídica é circular, pois os resultados dependem mais dos pressupostos teóricos (e ideológicos) do pesquisador do que da própria pesquisa: se partimos do pressuposto que as interpretações corretas são aquelas que maximizam a proteção dos réus em processo penal, concluiremos que certas interpretações serão corretas ou incorretas, independentemente de qualquer análise dos fatos. Uma pesquisa cujo resultado não depende dos fatos observados, mas depende fortemente da ideologia do observador, dificilmente merece ser chamada de pesquisa, mas é isso que fazemos constantemente nos nossos discursos dogmáticos.

Essas complexidades teóricas fazem com que, normalmente, o desenvolvimento de novas teorias e metodologias seja um objeto de pesquisadores mais experientes e que elas surjam em pesquisas mais amadurecidas, mais tipicamente nos doutorados.

No caso de pesquisadores iniciantes, é mais seguro trabalhar com perspectivas mais descritivas (em que as questões teóricas tendem a ser menos dramáticas) ou com a aplicação de métodos e teorias desenvolvidas em outros trabalhos (buscando identificar os resultados da aplicação de uma teoria sólida a objetos novos). Nesses casos, o referencial teórico pode ser resumido a uma identificação das categorias relevantes e dos esclarecimentos necessários para a sua devida compreensão.