Das monografias aos artigos
No campo jurídico, é comum que os trabalhos acadêmicos sejam mais volumosos, pois o prestígio acadêmico dos direitos está tradicionalmente ligado a obras de cunho didático e sistemático, que exigem muitas páginas. O livro volumoso dá mais prestígio, e um tratado em vários tomos já foi o signo maior do prestígio acadêmico de um jurista, da maturidade de um professor com bagagem suficiente para escrever um livro que abarque todo um campo do direito. Essa cultura do livro é ligada ao caráter professoral dos juristas, que realizam compilações e sistematizações, mais do que propriamente pesquisa.
Além disso, é muito comum que os trabalhos de mestrado ou doutorado sejam publicados sem grandes modificações, por meio de pequenas (ou médias) editoras, cujo modelo de negócio envolve publicar livros custeados com o dinheiro do autor e não com o lucro das vendas. Ocorre, porém, que as monografias acadêmicas não são textos escritos para publicação e sim para defesa perante banca, o que faz com que boa parte delas não se dedique a apresentar resultados de pesquisa, mas a comprovar a proficiência do autor por meio de uma demonstração de estudo.
A aprovação dos trabalhos muitas vezes decorre do reconhecimento de que o autor se esforçou bastante, que leu muito, que mapeou a bibliografia existente, que se dedicou a conhecer um pouco de história e de direito comparado, ou seja, que estudou a fundo o tema de sua escolha. Essa profundidade do estudo pode ser importante para a formação dos estudantes, mas os textos assim construídos têm pouco interesse para os demais pesquisadores, pois lhes falta a originalidade que poderia estimular a leitura dos pares.
Quando se trata de publicar resultados de pesquisa, os livros apresentam uma série de inconvenientes: eles são demasiadamente grandes (ultrapassando em muito o tamanho exigido para expor uma pesquisa original), o que os torna também caros e de publicação muito demorada. As editoras de prestígio não têm estrutura para receber uma série de manuscritos com centenas de páginas e selecionar os mais adequados. O tempo necessário para avaliar, comentar e rever um livro de 250 páginas é muito maior do que o necessários para tratar um artigo de 25 páginas, e não podemos minimizar o fato de que as revistas acadêmicas são baseadas no trabalho gratuito de vários pareceristas que se dispõem a ler um artigo por semestre, mas que dificilmente se disporiam a ler e comentar gratuitamente um livro inteiro.
O modelo de negócio das revistas é muito curioso: elas recebem textos que custaram muito caro para serem realizados (pois a pesquisa é uma atividade cara), enviam a pareceristas que analisam gratuitamente esses textos e depois publicam revistas que podem ser disponibilizadas gratuitamente (no caso de periódicos institucionais), mas que comumente são vendidas a preços exorbitantes para bibliotecas de universidades porque a qualidade de suas pesquisas depende do acesso a toda a literatura de grande prestígio. Quando os textos são disponibilizados gratuitamente (o que se chama comumente de open access) por editoras privadas, esse custo é muitas vezes transferido para os autores, que precisam pagar pelos serviços de revisão e publicação (tal como é feito pelas editoras de livros).
De um modo ou de outro, o principal ativo de uma revista acadêmica é o seu prestígio. Sem prestígio, o periódico não consegue receber submissões dos melhores textos e tampouco consegue que os pareceristas se disponham a avaliar os textos em troca de um certificado que pode ser colocado em seus currículos. Quanto maior o prestígio da revista, maior a sua capacidade de atrair bons textos e de contar com bons pareceristas, o que estimula um mercado bastante segmentado, organizado em torno de algumas poucas revistas de grande reputação, capazes de dar vazão à publicação científica de qualidade, que será lida e citada pelos demais pesquisadores.
Essa configuração do mercado de periódicos ocorreu ao longo do século XX, época durante a qual em diversas áreas científicas se consolidou a prática de que a atividade acadêmica envolve a realização de pesquisas que devem ser publicadas nos periódicos especializados, pois esse é o sistema que melhor garante a qualidade científica das publicações. A tradição dos periódicos científicos remonta a 1665, quando foi publicada a primeira edição do Philosophical Transactions of the Royal Society, o primeiro periódico voltado exclusivamente a dar publicidade às pesquisas científicas em andamento. Porém, a institucionalização do peer review, que é a marca dos periódicos científicos atuais, somente ocorreu em meados do século XX.
Desde então, nos campos acadêmicos ligados à pesquisa experimental, a forma típica de publicação acadêmica é o artigo científico e não os livros. Os artigos são um formato mais conciso, adaptado ao tamanho dos relatórios de pesquisa com objetos muito específicos e também ao fato de que se consolidou na comunidade acadêmica a percepção de que o peer review realizado pelas revistas científicas é uma exigência fundamental para garantir a qualidade da produção científica.
Os livros, com seu formato mais longo (correspondente ao tamanho de vários artigos), são pouco adaptados a dar publicidade a pesquisas empíricas com objetos concisos. Os livros continuam sendo a forma padrão dos textos didáticos e dos textos de divulgação científica (que, inclusive, não têm espaço nas revistas científicas), mas cada vez mais a publicação dos resultados de pesquisas se concentra nas revistas com sistemas rigorosos de peer review.
Apesar do crescimento exponencial da relevância dos periódicos jurídicos ao longo da últimas décadas, a produção acadêmica no direito continua tendo nos livros uma de suas formas principais de circulação. Porém, o prestígio acadêmico dos livros jurídicos aparentemente está em decadência, juntamente com o próprio mercado editorial.
Ao longo do século XX, a publicação de livros se dava dentro de um mercado editorial em que o papel central era ocupado pelas editoras. Tratava-se de uma época na qual todos os livros eram impressos em offset: mediante a confecção de matrizes que eram caras, mas que viabilizavam uma impressão relativamente barata. No modelo de negócio então vigente, as editoras assumiam os custos inicias (revisão, diagramação, confecção da matriz), os autores recebiam uma porcentagem pequena das vendas, e todo esse sistema era custeado mediante a venda dos livros.
Naquele contexto, não havia espaço para livros com baixo apelo comercial, pois os custos fixos da impressão inviabilizavam pequenas tiragens, visto que os livros somente começavam a ser viáveis a partir de 1.000 exemplares, que é uma tiragem muito alta para livros de interesse demasiadamente específico. De fato, o mercado era dominado por livros didáticos, legislação consolidada, comentários à legislação e por livros dogmáticos de caráter abrangente. Tratava-se, pois, de um mercado editorial bastante fechado e restrito.
Ao lado das grandes editoras, havia editoras menores, especialmente nos anos de 1980 e 1990, que muitas vezes adotavam um modelo de negócio diferente: os custos fixos iniciais não eram custeados pela editora, mas pelos próprios autores, o que viabilizava uma maior abertura do mercado, mas que colocava em risco a qualidade acadêmica dos livros e, principalmente, o prestígio ligado à sua publicação.
Se antes dessa época a publicação de um livro era um sinal de prestígio, ao longo da década de 1990 esse prestígio foi sendo minado pelo fato de que boa parte dos pós-graduados em direito tinha uma possibilidade efetiva de publicar suas dissertações e teses por um custo que não era demasiadamente alto para um profissional do direito. Nesse contexto, o livro foi perdendo seu papel como signo de prestígio acadêmico, situação que se radicalizou no início deste século com o avanço das gráficas rápidas, que não usavam o sistema de offset, mas de impressoras que não precisavam de matrizes. Essa nova forma de impressão viabilizou tiragens pequenas porque, apesar dos altos custos de impressão, a economia com a matriz possibilitava chegar a preços aceitáveis em tiragens de 100 a 200 exemplares.
Hoje em dia, chegamos ao ponto de que existem empresas que publicam gratuitamente os livros e os imprimem exclusivamente sobre demanda, o que possibilita que uma pessoa tenha livros em seu currículo que podem ter uma circulação praticamente nula e que não tenha envolvido nenhuma análise quantitativa. Por seu turno, a ampliação do acesso digital e da pirataria fez com que houvesse um interesse decrescente das editoras na publicação de livros com menor potencial mercadológico, e uma concentração na publicação de livros didáticos voltados para a graduação ou para concursos públicos.
Essa crise de prestígio dos livros tem levado a uma correlata crise do modelo de monografia. Os textos acadêmicos chamados de monografias seguem a estrutura do livro, tanto que, numa tradição acadêmica que vem caindo em desuso, os melhores textos defendidos em bancas costumavam receber uma indicação de publicação. A vocação das melhores monografias é ser publicada na forma de livro, e várias delas foram a base de livros de bastante impacto.
Porém, a grande expansão que ocorreu na pós-graduação em direito nos últimos 20 anos inundou as bibliotecas e as editoras com milhares de monografias, dissertações e teses cuja qualidade acadêmica é bastante irregular. No final dos anos 1990, houve uma ampliação substancial no número de cursos de direito (que praticamente triplicou entre 1995 e 2000), acompanhada por exigências cada vez mais rígidas de titulação dos professores, o que contribuiu decisivamente para que a demanda por vagas em cursos de mestrado e doutorado se expandisse e viabilizasse um crescimento muito grande da pós-graduação em direito no Brasil, que praticamente triplicou o número de titulados por ano entre 1999 e 2011.
Em 1996, a UnB tinha 15 vagas em sua pós graduação. Hoje são mais de 150 vagas, com uma produção em série de trabalhos de conclusão de curso que muitas vezes não tem praticamente nenhuma circulação fora da própria banca. Não é raro que trabalhos feitos na UnB sequer citem outras monografias realizadas na própria universidade, tratando de temáticas correlatas, o que mostra que os imensos esforços individuais feitos pelos pesquisadores não têm gerado diálogos e interações entre os trabalhos, ao menos no grau que seria esperado.
Em 2016, a Nature publicou um editorial intitulado The past, present and future of the PhD thesis, em que trouxe uma estatística muito repetida pelo seu valor retórico: o número médio de leitores que leem a integralidade de uma tese de doutorado é de 1,6, incluindo o autor. Esse número não decorre de uma pesquisa, mas transmite uma impressão comum: das teses, costumamos ler os resumos, as conclusões e algumas partes que consideramos as mais relevantes. O formato da escrita não corresponde aos modos de leitura, que se concentram nas contribuições originais dos pesquisadores.
As monografias, dissertações e teses muitas vezes incorporam todo o itinerário reflexivo do pesquisador, servindo como uma forma de avaliar se o seu desenvolvimento intelectual justifica a atribuição dos títulos acadêmicos ligados a ela. Porém, existe uma grande distância entre o valor pedagógico de uma monografia (que é muito grande para o seu próprio autor) e o seu valor acadêmico para um ramo do conhecimento.
Além disso, a adoção generalizada do formato monografia e a sua posterior inserção em bancos de teses imensos e pouco estruturados faz com que esses trabalhos, embora públicos, sejam pouco visíveis, por não terem grande relevância para os mecanismos de busca. E, se os livros publicados enfrentam uma crise de prestígio, a desconfiança sobre a qualidade das monografias acadêmicas é maior ainda, visto que as bancas de defesa não são conhecidas pelo rigor com que avaliam esses trabalhos.
Dado esse contexto, não deve causar espanto o fato de que os artigos em periódicos especializados têm ocupado um lugar de especial prestígio como forma de veiculação da produção acadêmica em direito. Apesar de todos os problemas que as revistas enfrentam (que não são poucos), o sistema de peer review tem garantido uma razoável seletividade, ao menos para as revistas que obtém classificações mais altas no Qualis.
O sistema Qualis foi criado em 1998, como uma forma de evitar que a multiplicação artificial de publicações de baixa qualidade distorcesse a avaliação nacional dos programas de pós-graduação. Inicialmente, ele valorizava a publicação em periódicos internacionais (que se pressupunha mais rigorosos em seus métodos de seleção), mas esse privilégio logo foi abandonado, com a criação de um sistema baseado em três níveis: Qualis A, para as revistas que cumpriam requisitos mais rigorosos, Qualis B, para revistas de qualidade intermediária, e Qualis C, que envolviam as revistas que não pontuavam na avaliação da Capes.
Também foi criado um Qualis Livros, que começou pontuando as editoras, mas que posteriormente foi modificado para uma avaliação específica de cada obra. Os critérios de avaliação dos livros são mais complexos que os das revistas, pois enquanto cada vez mais são avaliadas pelo seu fator de impacto e pela capacidade que elas têm de ingressar em plataformas indexadas, os livros são avaliados por sua qualidade individual e por uma projeção de sua capacidade de impacto no campo.
Na última avaliação, um artigo Qualis A valia metade dos pontos de um livro Qualis L1. Porém, um capítulo de livro em um Livro L1 vale o correspondente a um artigo em revistas de qualidade mediana, o que desestimula a utilização de textos de maior qualidade como capítulos de livro, e mesmo como livros, pois a maximização dos pontos está na publicação de um texto longo no formato de uma série de artigos, cujos pontos somados tendem a ser maior do que de uma obra individual.
Tudo isso faz com que, no contexto atual, a publicação de artigos em periódicos tende a ser mais eficiente tanto para o prestígio individual dos autores quanto para a avaliação dos programas de pós-graduação. Mesmo nos programas em que se exige que os Trabalhos de Conclusão tenham formato monográfico, existe uma alta expectativa (quando não um dever formal) de que os estudantes publiquem artigos durante os cursos (especialmente de doutorado) ou que ao menos apresentem artigos para publicação.
Assim, por mais que as exigências formais ainda envolvam a defesa de uma monografia (que tem por modelo o livro), a nossa cultura acadêmica cada vez mais exige que os pesquisadores publiquem seus trabalhos no formato de artigo. Essa exigência ainda não tem sido incorporada completamente às reflexões sobre metodologia da pesquisa no direito, que continuam sendo focadas nas monografias e não nos artigos, apesar do fato de que a avaliação da produção científica seja focada na produção revista por pares, que é publicada em periódicos e não em livros.
Esse descompasso faz com que os pós-graduados, de quem se espera que tenham trabalhos publicados, se vejam quase sempre frente ao complexo desafio de converter suas monografias em artigos. Essa conversão é difícil porque, como já dissemos, as monografias não são escritas com o objetivo de serem publicáveis, mas com a finalidade de garantir a aprovação na banca.
Tal dificuldade é agravada porque, logo depois da defesa, raramente as pessoas têm energia para realizar as adaptações necessárias, o que muitas vezes acaba fazendo com que o pós-graduado, além de converter a monografia em artigo, tenha de realizar também uma atualização dos dados, que estarão muitas vezes defasados. Uma monografia defendida em março (no final dos prazos típicos de defesa) trabalha com dados atualizados até dezembro (ou com dados anteriores), o que faz com que a janela na qual as conclusões são publicáveis se encerra em meados do ano. Por isso, se o pesquisador resolver utilizar seu recesso de julho para realizar a conversão em artigo(s), o que é um cenário otimista, quando o artigo chegar nas mãos do parecerista, em agosto ou setembro, dificilmente ele será aceito sem uma atualização extremamente trabalhosa dos dados. Não é por acaso que muitas monografias terminam sem gerar os artigos que delas se esperavam, o que é ruim para o estudante e também para a instituição.
Por outro lado, a conversão de artigos em monografias é relativamente simples, pois basta acrescentar alguns dos elementos de um estudo que foi realizado, mas que não tem lugar no formato conciso dos artigos. Essa facilidade vem do fato de que, ao escrever artigos, o pesquisador precisa construir um texto enxuto, cortando tudo o que não é absolutamente necessário para sustentar suas conclusões. Com isso, é possível manter o artigo praticamente intacto (ou os artigos, no caso de uma tese de doutorado) e acrescentar elementos que fizeram parte dos estudos envolvidos na escrita do trabalho, mas que não constituem propriamente resultados de pesquisa: uma introdução mais longa (explicando coisas que são relevantes para compreender o contexto do estudo), um capítulo de revisão da literatura (normalmente com outro nome), um capítulo em que faça uma análise minuciosa da base teórica (que raramente é publicável, pois a mesma base teórica provavelmente já foi analisada em trabalhos anteriormente publicados), reflexões finais que mostrem os insights que não conseguiram ser explorados e diga como a pesquisa pode ter continuidade. Esses elementos acessórios podem ter utilidade retórica no sentido de mostrar à banca os esforços do estudante, mas despertam um interesse editorial muito restrito (para não dizer nulo).
Em trabalhos mais complexos, uma outra vantagem é que planejar artigos autônomos voltados a alcançar cada objetivo específico da pesquisa permite uma publicação durante o período do curso. Um trabalho feito no segundo ano do doutorado pode ser muito relevante naquele momento, mas pode ter um interesse editorial pequeno dois anos depois, quando o recém-doutor tiver conseguido converter sua tese em dois ou três artigos. De fato, escrever teses relevantes envolve uma grande capacidade divinatória, pois é preciso escolher um tema que será relevante cinco anos depois da formulação do projeto apresentado nos processos seletivos de doutorado. A chance de que o tema escolhido inicialmente perca relevância é muito grande, e escrever na forma de artigos permite que os trabalhos sejam publicados tão logo sejam concluídos.
Por isso, nosso foco será na produção de um projeto de pesquisa focado na produção de um artigo e não de uma dissertação, o que implica uma necessidade de maior concisão e de uma concentração absoluta no que o trabalho tem de original, sem incorporar várias estratégias que terminam por se introduzir nos trabalhos monográficos como forma de suprir a expectativa de tamanho e de mostrar para a banca todo o estudo realizado pelo estudante.
Uma vez que o projeto de artigo define com precisão uma pesquisa, é possível adaptar o texto a ser produzido às exigências que são próprias a cada programa e à complexidade de cada grau acadêmico.